A casa de assistência Filadélfia CAF,
parceira KNH Brasil,
trabalha na grande São Paulo questões relacionadas ao abuso e exploração sexual
envolvendo jovens e adolescentes. Com o advento da copa das confederações 2013,
Copa do Mundo 2014, Olimpíadas 2016 e as grandes obras, nunca foi tão propicio
levantar questões tão importantes no enfrentamento dos direitos de crianças e
adolescentes.
A CAF hoje conta com 6 projetos de apoio e promoção a jovens e
adolescentes. Dentre esses seis projetos, a Knh Brasil, apoia diretamente O
Meu Corpo Meu Bem, que é
um projeto de arte-educação em sexualidade.
Por meio de artes e jogos o Meu Corpo Meu Bem, trabalha com crianças
adolescentes e adultos temas relacionados com sexualidade, relacionamento,
autocuidado e prevenção da violência sexual, tendo o cuidado de direcionar as
atividades a cada faixa etária.
São 5
bases de trabalho que o projeto utiliza: conhecer, apreciar, cuidar, respeitar
e proteger o seu corpo, com o intuito de que jovens desenvolvam a sexualidade
de forma segura e com afeto.
A KNH Brasil conversou
com Euci
Selma Siébra Munhóz, coordenadora Do Meu Corpo Meu Bem, a respeito do
enfrentamento do abuso e exploração sexual de jovens e adolescentes.
Por:
Hudson Freitas
KNH - Como a CAF
acredita principalmente através do Projeto Meu Corpo Meu Bem ser possível
combater o turismo sexual de crianças e adolescentes no Brasil?
CAF - É possível, mas não é fácil ou simples. O combate ao turismo
sexual de crianças e adolescentes no Brasil, depende de ações e setores
diversos. É preciso considerar que se trata de “crime organizado” e que existem
setores responsáveis e competentes para ações específicas. Nosso papel no
combate ao turismo, à exploração sexual de crianças e adolescentes, é educar
para projeto de vida, informar e orientar a sociedade e as famílias sobre os
direitos de crianças e adolescentes, inclusive de como identificar situações de
risco e proceder nas denuncias.
KNH - A CAF já está discutindo
possíveis estratégias a serem implementadas contra a violência sexual de
crianças e adolescentes durante os períodos dos megaeventos esportivos -Copa
das Confederações 2013 e COPA 2014 - ? Se sim, o que já foi possível delinear?
Se não, há alguma pretensão neste sentido?
CAF - O projeto Meu Corpo Meu Bem atua nas escolas do entorno da CAF
com oficinas de autocuidado para prevenção de abuso sexual infantil nas
Escolas de Educação Infantil e de prevenção de DST/AIDS, Sífilis congênita e
violências contra crianças e adolescentes na comunidade e Escolas de Ensino
Fundamental do entorno da CAF. - Iniciamos o ano de 2011 promovendo um encontro
com os professores e educadores sociais, quando apresentamos a preocupação com
as crianças e adolescentes em razão da realização dos eventos em 2013 e 2014,
salientando as mudanças na infraestrutura da região - instalação de rede de
hotéis - e a construção do estádio onde se dará a abertura da Copa do Mundo -
São Paulo – Zona Leste. Em 2011 também participamos do encontro de
filiadas RENAS que possibilitou novos encaminhamentos para a rede de proteção,
construção de novas alianças e estruturação da Campanha de Enfrentamento ao
Turismo Sexual da Criança e do Adolescente - Projeto Copa 2014;- Retomada de
contatos com o BICE – International Catholic Child Bureau, que firmou
parceria com a CAF para a realização do “Café com Reflexão” de 2012 - agora em
Dezembro de 2012, para participação de jovens líderes comunitários e líderes de
diversos setores do município para tratar do tema;- Firmamos parceria com o
Instituto Minidi de Arte, Educação Social para capacitação de 40 professores e
educadores sociais que atuam na Zona Leste de São Paulo, na metodologia do
projeto Meu Corpo Meu Bem – abordagem de Arte/Educação dos temas de Saúde
e Direitos Humanos;- Em 2012 demos continuidade às ações e eu e outro membro da
equipe, a Regina Trabachini, participamos do XIII Curso Multidisciplinar de
Atualização no atendimento em situações de abuso sexual do PAVAS – Programa de
Atenção à Violência Sexual, Saúde Pública, USP. Como atividade do curso fizemos
o trabalho: “Enfrentamento ao abuso de exploração sexual infanto-juvenil
na Região de Ermelino Matarazzo – Zona Leste de São Paulo: Ações do projeto
“Meu Corpo Meu Bem” da Casa de Assistência Filadélfia”. Após a realização do
diagnóstico situacional, do trabalho, delimitamos nossas ações: 1- Fortalecer a
comunidade a partir do trabalho intersetorial, em rede, para o enfrentamento do
abuso e exploração sexual infanto-juvenil. 2- Promover o fortalecimento pessoal
e o vínculo familiar como uma estratégia para a prevenção do abuso e exploração
sexual de crianças e adolescentes; 3- Estimular a capacitação continuada de
profissionais e cuidadores fortalecendo a rede de proteção e da prevenção do
abuso e exploração sexual infanto-juvenil. Os eixos temáticos serão:
1) Estatuto da Criança e
do Adolescente;
2) Arte/Educação em Saúde;
3) Trabalho em Rede.
Esse plano de
enfrentamento foi compartilhado com professores e educadores sociais no
encontro “Acampadentro”, realizado no dia 29 de Setembro de 2012;- Realizamos
alguns contatos e reuniões com lideranças religiosas e com o apoio dos pastores
e de jovens líderes; no dia 10 de Novembro de 2012 estaremos realizando na
Igreja Presbiteriana de Cidade A. E. Carvalho, um Café – Fórum Jovem para que
os jovens de diversas igrejas possam discutir e propor ações de prevenção no
espaço religioso de diversas denominações.
KNH - A seu ver, porque a exploração sexual nem sempre é vista como
crime contra a criança e principalmente contra o adolescente?
CAF - Sou artista plástica, arte-educadora, e minha pesquisa
caminha pela cultura, cultura brasileira. A exploração sexual é crime, mas é
multifacetada, complexa, e me importa as questões culturais que predispõe
situações de risco e até legitimam absurdos, coisas bizarras. No meu
entendimento, os valores culturais, dentro de um certo contexto, são mais
determinantes para que ocorram a exploração sexual que outros fatores. Os
valores que uma pessoa possui é que a levam a ver algo como aceitável/correto
ou repugnante/crime. Que tipo de “valor” damos a crianças e adolescentes: de
coisa, de produto?
KNH - Você acredita que a omissão tanto do estado como da sociedade é
o que contribui para que jovens sofram os males da exploração sexual no Brasil?
Se sim, como e onde você vê que isto acontece?
CAF - Creio que já avançamos, estado e sociedade, mas existem ainda
grandes desafios. No encontro que tivemos com os professores e educadores
sociais a grande questão colocada pelos participantes foi “como denunciar sem
sofrer retaliação”. Orientamos como deve ser o procedimento, mas será possível
fazer algo a esse respeito e não se envolver a ponto de não sentir o rebote de
alguma forma? A denúncia anônima resolve em parte, porque só faz denúncia quem
tem esse valor, conhece o processo e por não concordar toma uma atitude. Isso
acontece em todos os setores. Posicionar-se tem preço, costuma ser caro,
precisa de vontade política para não ser omisso.
KNH - No caso de crianças e adolescentes que sofreram abuso e/ou
exploração sexual, é possível reviver “sonhos perdidos”? Que estratégias são
necessárias?
CAF - Em primeiro lugar é preciso prevenir casos tanto de abusos como
de exploração sexual. Não é possível mensurarmos o tamanho dos estragos e
nem prever quem consegue transpor esse tipo de experiência de forma a
recuperar-se totalmente. Quanto aos casos suspeitos, a criança ou adolescente
precisam ser ouvidos, depois, o mais rápido possível, precisam receber
atendimento médico (exame e medicação preventiva para DST/AIDS caso o
profissional entenda necessário) e psicológico. Depois outras providencias, as
legais.
KNH - Nota-se um número crescente de casos envolvendo meninos na
exploração sexual, sobretudo nas orlas brasileiras, o que podemos atribuir esse
aumento crescente envolvendo meninos?
CAF - A minha opinião é que, atualmente, isso é mais visível, mas
sempre houve. Existe uma estrutura “organizada” que favorece, mas são muitos os
fatores. Tudo começa na família, mas é lógico que as condições sociais e tantas
outras dessa família podem também favorecer. É compreensivo que uma criança ou
adolescente sem recursos sejam seduzidos por ofertas inescrupulosas. Eles
apelam para as necessidades deles, e meninos também têm necessidades.
Eles são vulneráveis, e muitas vezes a própria família também. A mídia muitas
vezes não colabora. Ouvi recentemente que lá fora, no exterior (alguns países)
se faz propaganda do Brasil como “um lugar onde tudo pode”. A relação é feita
com os comportamentos das pessoas em nossas festas populares (Carnaval) e a
leitura é de que esses tais comportamentos sejam atribuídos a todos da população
indiscriminadamente. Valoriza-se muito mais o que as pessoas possuem do que os
que elas são, isso nos programas de TV, os artistas, as pessoas que ficam em
evidência. Assim, se o importante é ter, então se justifica fazer qualquer
coisa para possuir, ostentar, etc.

KNH - É sabido que
esses meninos acabam durante vários dias fazendo programas, com alguns clientes
fixos ou ate mesmo mais de um, em casas, apartamentos, ou em fletes, com
turistas. É Comum esses meninos utilizarem algum medicamento ou drogas ilícitas
para dar conta de tantos dias de atividade?
CAF - Como já mencionei essas atividades não acontecem sozinhas, estão
em rede com outras atividades ilegais. A falta de informação sobre as
consequências para a saúde seja sobre as práticas sexuais e do uso de
entorpecentes, medicamentos, drogas, seja o que for, é um dado importante.
Outro é que muitos referem só ter condições de submeter-se a essas práticas sob
efeito desses recursos. Esses jovens precisam de outras opções, projeto de vida
alternativa.
KNH - Na CAF vocês tem uma metodologia para o autocuidado através da
Arte/Educação. Como é esse trabalho? Quais seus objetivos?
CAF - Nosso trabalho tem sido desde o início do projeto o de prevenção
primária, “maneira mais econômica, eficaz e abrangente”. Em 2003 quando a CAF
assumiu o abrigo de crianças e adolescentes que viviam ou conviviam com
HIV/AIDS, na Zona Leste de São Paulo, a direção soube que alguns não tinham o
histórico de transmissão vertical do vírus HIV - Denomina-se transmissão vertical
do HIV a situação em que a criança é infectada pelo vírus da AIDS durante
a gestação, o parto ou por meio da amamentação - como era de se esperar naquela
época, mas haviam sido infectados com o vírus HIV por abuso sexual. A questão
era: como lidar com essa situação e tratar com crianças e adolescentes com esse
histórico de violência somado ao de soropositividade? A diretora executiva
nessa época, Ieda Maria S. Bochio, organizou um grupo de técnicos, na
verdade, uma equipe multidisciplinar para realizar atividades de educação em
sexualidade no Abrigo da CAF. Foi nesse momento que fui convidada a participar
da equipe. Como artista plástica e arte-educadora colaborei com a formulação da
metodologia: Arte/Educação para abordagem dos temas de Saúde, privilegiando a
cultura brasileira, jogos e as linguagens artísticas. As atividades de
prevenção com crianças e adolescentes são realizadas em seis encontros,
baseados em cinco pilares e um último encontro quando é feita uma avaliação e o
compromisso, entrega de certificado. Quando não se conhece o próprio corpo, é
difícil apreciá-lo; quando não apreciamos não cuidamos; a negligência com o
próprio corpo é uma forma de desrespeito e a consequência, geralmente, é
expor-se a riscos. Crianças e adolescentes que aprendem esses princípios tem
mais probabilidade de protegerem-se de violências e de protegerem outros. As
atividades artísticas possibilitam estratégias diversas, leituras expressivas e
ações dialógicas, colaborando na educação em sexualidade, prevenção e identificação
de casos de violências, abuso sexual infantil. Quando as oficinas são
realizadas nas escolas fazemos primeiro um encontro de sensibilização com os
pais e cuidadores e com os professores. Isso é fundamental. Além de estender
essas informações entre os adultos, eles ficam sabendo que os jovens estão
sendo orientados e que mais pessoas estão atentas para identificar possíveis
casos de violência contra crianças e adolescentes.
KNH - Jovens que vivem em comunidades de alta vulnerabilidade social
ou em regiões periféricas são as maiores vitimas da exploração e abuso sexual
ou o jovem de classe média e classe média alta, também está à mercê de abuso e
exploração?
CAF - O abuso sexual acontece em todas as classes sociais, credos, em
toda parte do mundo. Nas comunidades mais vulneráveis essas ocorrências
costumam vir a público, já nas classes média e alta costumam ser abafados.
Veja, quando uma criança sofre violência dentro de um cômodo da comunidade é
mais fácil alguém ouvir, perceber, e denunciar. Já nos grandes apartamentos,
palacetes ou condomínios onde as casas ficam distantes umas das outras é muito
mais difícil haver o envolvimento de outras pessoas para interferir. Famílias
com maior poder aquisitivo, quando algum caso de violência sexual acontece, o
sigilo é obtido com presentes, com atendimentos de médico e psicólogo de
família, que nem sempre rompem o ciclo.Quanto à exploração sexual parece que é
maior entre jovens de menos acesso, de regiões de periferia. O fenômeno é
semelhante. Contudo, não podemos esquecer que os jovens adolescentes são
vulneráveis em qualquer classe social pela própria condição de desenvolvimento.
Vez ou outra surgem na mídia casos de jovens de classe média e alta envolvidos
com drogas, que cometem furtos, assaltam, matam e é sabido que devem se expor
em atividades sexuais impróprias para manter o vício, a dependência. O número é
bem maior do que é divulgado, e eles acabam tendo o suporte da família se não
para dar conta do problema, pelo menos para abafar.
KNH - Estamos falando de violência sexual e possivelmente tendo como
uma das causas a fragilidade e/ou rompimento dos vínculos familiares. Como é o
trabalho com as famílias neste sentido?
CAF - Como mencionei, iniciamos o trabalho com crianças e adolescentes
em situação de abrigamento. O trabalho com as famílias era no sentido de
reinseri-los na família de origem ou em uma de adoção. Esse trabalho foi
encabeçado pelo coordenador do Abrigo, Rubens Ortiz, e sua equipe. O Abrigo
teve suas atividades encerradas em Dezembro de 2010, mas o Rubens continua
dando suporte para essas crianças e adolescentes em suas famílias.Na escola,
fazemos as oficinas de sensibilização e intermediamos o relacionamento entre a
escola e a família, principalmente nos casos de negligência - faltas na escola,
trabalho nos faróis, enfermidades, falta de higiene, de violência física
- e quando identificamos casos de abuso sexual. Atuamos com as famílias nos projetos
que tem parceria com a Secretaria Municipal Assistência e Desenvolvimento
Social, SASF e CCA, nas oficinas de geração de renda, sob coordenação da
Regina A. Trabachini, e nas comunidades religiosas com as quais temos parceria
de trabalho. As crianças e os adolescentes do entorno da CAF, ou estão na
escola, ou nos projetos ou nas igrejas. Infelizmente não é a maioria, e não
temos condição de dar conta de tudo que é preciso fazer. Daí entendemos que é
preciso capacitar professores, educadores sociais, líderes das igrejas para
identificar casos e como atender as crianças e adolescentes que passam por
essas situações de violência
KNH - Gostaria de deixar alguma mensagem para as pessoas no sentido da
responsabilidade de todos no enfrentamento das violações em geral dos diretos
humanos de crianças e adolescentes?
CAF - Posicionar-se e enfrentar as violações de direitos humanos de
crianças e adolescentes é responsabilidade de todos. Não há dúvidas sobre isso,
mas também não é segredo de que há resistências em todos os setores. Desde o
surgimento da AIDS a quebra de paradigmas retrata o direcionamento adotado nos
serviços de atendimento aos portadores do HIV/AIDS. A AIDS foi e ainda é um
desafio, mas o enfrentamento da epidemia construiu um conhecimento que pode ser
reproduzido para enfrentar a violência contra crianças e adolescentes. É
preciso desconstruir o que está estabelecido, sair do conformismo, romper o
conceito de que o enfrentamento é tarefa de alguns e partir para ações
criativas, Inter setoriais e em rede.