Créditos:
Igor Ojeda, Repórter Brasil
Boné bordado com o rosto
sorridente do Coringa (o inimigo do Batman), camiseta vermelha estampada,
bermuda escura de surfista, fitinha do Senhor do Bonfim no tornozelo… pés
descalços. O garoto tímido, de seus 12 anos, sobe na lápide suja e começa a
varrer as folhas secas que a cobrem. “Vou pegar água”, diz. Desce, pega o balde
laranja e some por alguns minutos pelo “labirinto” do cemitério da Quarta
Parada, no bairro da Água Rasa, Zona Leste de São Paulo (SP). Com esforço,
volta segurando o recipiente quase transbordando e começa a despejar seu
conteúdo sobre a lápide.
Em seguida, espalha dois
tipos de detergentes sobre o local, pega a vassoura e esfrega. Nada escapa, nem
mesmo a imagem de Nossa Senhora que adorna o túmulo. Joga um pouco mais de água
e começa a tirar o excesso com a ajuda de um rodo. Mais água, mais rodo. Enrola
neste um pano de chão com aspecto de recém-comprado e o esfrega na superfície
úmida. “Acho que pode jogar mais um pouco de água, não?”, pergunta a senhora
que “contratou” o serviço. O menino desce, pega o balde e some novamente.
Assim como ele, outras
dezenas de crianças e adolescentes faziam o mesmo trabalho, no mesmo cemitério
e no exato momento, um domingo, 12 de maio, Dias das Mães. Na manhã desse dia,
a Repórter Brasil visitou três cemitérios na capital paulista. No da Quarta
Parada presenciou grande incidência de trabalho infantil. Nos outros dois – o
da Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte, e o da Consolação, na região central
–, testemunhou apenas adultos trabalhando.
A reportagem procurou os
responsáveis pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo (SFMSP), que, em
nota, afirmaram que a administração “não permite, em nenhuma hipótese, a
atuação de menores prestando qualquer serviço dentro das necrópoles
municipais”. O texto diz ainda que em datas especiais a Prefeitura solicita
“intensificação das rondas realizadas pela Guarda Civil Metropolitana e pela
Polícia Militar nos 22 cemitérios municipais”. Por fim, o Serviço Funerário
pedem que população que acione “o Conselho Tutelar como forma de ajudar no
combate ao trabalho infantil”, e destacam que “é fundamental que haja a
conscientização dos pais e responsáveis para os malefícios da prática, e que
estes cobrem a permanência dos meninos e meninas na escola como forma de evitar
o trabalho precoce.”
“A OIT [Organização
Internacional do Trabalho] classifica a atividade de crianças em cemitérios como
umas das piores formas de trabalho infantil. A pessoa com menos de 18 anos não
pode exercê-la”, lembra a procuradora Regina Duarte da Silva, coordenadora da
Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de
Crianças e Adolescentes) na Procuradoria Regional do Trabalho, 15ª Região
(Ribeirão Preto), órgão vinculado ao Ministério Público do Trabalho (MPT). Tal
atividade para menores de idade é proibida pelo decreto presidencial 6.481 de
2008, que lista as piores formas de trabalho infantil (Lista TIP). Por todo o
Brasil, há notícias de que esse tipo de violação ocorre, especialmente nos dias
de Finados, das Mães e dos Pais, quando o movimento costuma ser maior. Poucas,
no entanto, são as ações de prevenção e repressão à prática.
Dormir na rua
O garoto tímido não estava
sozinho no cemitério da Quarta Parada. Fazia parte de um grupo grande, de dez
meninos com idades entre 11 e 14 anos, todos moradores do bairro de Pirituba,
Zona Norte. Haviam chegado na sexta-feira à noite, para poderem trabalhar desde
cedo no sábado, quando a demanda por lápides limpas de entes queridos começa a
crescer. Nas duas noites, dormiram na rua. “Passamos frio, para falar a
verdade. A gente forra as cobertas no chão e dorme. Trazemos só cobertas e
roupas. Durante o dia as guardamos num canto”, conta Felipe*, de 12 anos.
“Lavadinha na campa,
senhor?”, repete João* a cada pessoa que entra no cemitério. Para cada túmulo
limpo, cobra R$ 10. O menino de 13 anos encosta num carro estacionado enquanto
segura balde, vassoura, pano, rodo e produtos de limpeza. É o terceiro ano que
ele faz esse tipo de serviço. Ele conta que no Dia das Mães é cansativo, mas o
maior movimento é em Finados. “É quando tem mais trabalho.” Num dia como esse,
os meninos trabalham das seis da manhã às seis da tarde. Almoçam correndo uma
refeição de R$ 8 num bar próximo, que pagam com o dinheiro que ganham com a
limpeza das lápides. “A gente trabalha igual a um condenado”, admite. Num fim
de semana como o do último domingo, os garotos ganham de R$ 50 a R$ 100. No
feriado de Finados, esse valor pode subir a R$ 200. “No último Finados eu
ganhei R$ 200”, conta Felipe. “Tem gente que faz R$ 700. A gente cansa mais,
tem de carregar muitos baldes com água.”
João diz que os pais sabem
onde estão durante o fim de semana e não impõem restrições. “Nós que tivemos a
ideia de trabalhar com isso. Queremos ganhar dinheiro para comprar roupa. Não
queremos ficar dependendo de nossos pais”, explica. Especialistas alertam que o
Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, apontou que
no âmbito urbano muito do trabalho infantil está ligado à questão do consumismo
em crianças e adolescentes, que buscam bens que não recebem em casa. Nos demais
dias do ano, muitas vezes Felipe e João arrumam bicos em lava-rápidos de
Pirituba, outra atividade presente na lista de piores formas de trabalho
infantil. “Gostamos também de comprar coisas para levar para dentro de casa,
como alimento”, explica Felipe, enquanto dois de seus amigos brincam de espada
com os cabos das vassouras. Perguntado se vale a pena, o menino faz cara de
enfadado: “Vale a pena não. Você é louco, ficar passando a noite na rua? Né,
não? A gente veio porque não tinha nada para fazer. Estamos duros também…
ganhamos mais dinheiro aqui do que no lava-rápido, onde dá R$ 20, R$ 30 por
dia, trabalhando das oito da manhã às seis da tarde”.
Por todo o Brasil
O problema não se restringe
à cidade de São Paulo. Nos últimos anos, inúmeras denúncias têm surgido na
imprensa de trabalho infantil em cemitérios de todo o país. Passe o cursor
sobre os ícones abaixo e movimente o mapa para ler mais sobre outros casos e também
iniciativas de prevenção:
Visualizar Por todo Brasil, O trabalho Infantil em Cemitérios. em um mapa maior
A triste situação em João
Pessoa, na Paraíba, motivou a realização de um estudo em 2003 conduzido por
Nerise R. Andrade Veloso, secretária do Conselho Tutelar da cidade, e Sarita
Brazão Vieira, doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e professora e pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Em artigo para o livro “Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de
uma realidade negada” (clique aqui para baixar versão digital em PDF), elas
relatam os resultados das entrevistas feitas com quatro meninos e uma menina,
com idades entre 11 a 17 anos, que trabalhavam nos cemitérios locais. Os
garotos exerciam diversas atividades, como limpar túmulos, cavar covas e,
inclusive, ajudar em pequenas construções. Um eles relatou até ter participado
da exumação de um cadáver.
“Todas essas atividades são
realizadas praticamente sem nenhuma orientação, sem proteção, sem equipamentos
de segurança, simplesmente fazem da maneira que querem, na posição que acharem
mais cômoda. Quanto à jornada de trabalho, eles normalmente trabalham de 4 a 12
horas por dia e recebem de R$ 10 a R$ 15″, escrevem. Segundo as autoras, o
trabalho infantil em cemitérios, além de tudo, obriga as crianças e
adolescentes a conviverem de perto com a morte, o choro e a tristeza.
“Todo esse ambiente mórbido,
sem eles perceberem, os transforma em pessoas insensíveis quando se fala em
morte. Para esses meninos e essas meninas não existe tristeza, não existe medo,
mas ao mesmo tempo não querem morrer, querem viver, mesmo vivendo uma realidade
não entendida nem aceita”
Trecho do estudo “Crianças e
adolescentes que trabalham:
cenas de uma realidade
negada”
A procuradora Regina Duarte
da Silva concorda: “Pode causar abalos psicológicos, pois o cemitério é um
local de sofrimento de dor, não é lugar propício à permanência de crianças”,
diz. Felipe, um dos meninos que limpam lápides no Quarta Parada, em São Paulo,
admite. “É um peso nas costas, né não? Ficar vendo os outros enterrados…”.
Avanço em Campinas
Entre os dias 10 e 19,
Regina participou de uma força-tarefa de prevenção ao trabalho infantil na
limpeza de lápide em Campinas, no interior de São Paulo. Formado por MPT,
prefeitura, Guarda Municipal, Polícia Militar estadual e representantes dos
cemitérios do município, o grupo buscou dar orientação a todos os envolvidos na
prática: crianças e adolescentes, pais e as pessoas que “contratam” o serviço.
A denúncia da existência dessa situação foi feita pela ONG Movimento Vida
Melhor (MVM), especializada em assistência social a vítimas de trabalho infantil.
De acordo com a entidade, na
cidade as crianças recebem de R$ 5 a R$ 10 por lápide limpa e utilizam para tal
uma solução ácida composta de vinagre e limão, que pode causar queimaduras. No
último Dia de Finados, em novembro do ano passado, foram encontrados 21 meninos
com idades entre 11 e 15 anos – realizando esse tipo de trabalho. Alguns acompanhavam os pais, que vendiam flores no
lado de fora, enquanto outros eram explorados por traficantes, que obrigam as
crianças a repassarem o dinheiro ganho com a limpeza.
No Dia das Mães deste ano,
no entanto, a realidade foi completamente diferente. “O resultado da
fiscalização foi excepcional”, comemora Mário Seixas, superintendente-geral do
MVM. Segundo ele, nenhum menor foi visto trabalhando nos cemitérios de Campinas:
14 crianças que realizariam a atividade foram abordadas, ouvidas, orientadas e
encaminhadas para brinquedotecas montadas nos locais. “Acredito que essa ação
vai se constituir em um modelo.” Em fevereiro, quando a força-tarefa começou a
se formar, os cemitérios iniciaram uma campanha de conscientização para inibir
o trabalho infantil, com orientação a funcionárias, afixamentos de faixas e
distribuição de camisetas, além da montagem das brinquedotecas.
“A esmagadora maioria das
pessoas aderiu, e as próprias crianças não reagiram mal. Foi além da
expectativa. Como a causa é nobre, as coisas se justificam por si mesmo”,
ressalta Seixas. Ele destaca que os familiares das 14 crianças serão
contatados. O objetivo é compreender a realidade dos pais e buscar alternativas
para desestimular o trabalho dos filhos.
* Nomes alterados para
preservar a identidade dos entrevistados
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