Tipo de marisco muito
apreciado na culinária do recife, o sururu é frequentemente pescado por
crianças e adolescentes de comunidades ribeirinhas urbanas da cidade
Credito: Igor Ojeda, da RepórterBrasil do Recife PE
Normalmente
é assim. Os ribeirinhos da bacia do Pina, no Recife, saem para pescar o sururu
ainda na barriga da mãe. Quem brinca é Ronaldo, morador da comunidade Ilha de
Deus, enquanto está na superfície despejando o molusco numa galeia – em
seguida, submerge novamente. A brincadeira, no entanto, tem o seu fundo de
verdade, como diz o ditado. Hoje com 20 anos, o rapaz começou no ofício aos
cinco. Espécie de marisco pequeno, a iguaria é muito comum em mercados, feiras,
bares e restaurantes da capital pernambucana. Em geral, é preparada com leite
de coco – quando ganha um sabor adocicado – e servida com farinha de mandioca e
limão. Seu caldinho, apreciado tanto em restaurantes “finos” quanto em
quiosques de praia, é considerado afrodisíaco. “Desde que nasci trabalho com o
sururu. Com cinco anos já estava na maré. Chegava a faltar na aula para ir
pescar”, conta Ronaldo, que parou de estudar no sexto ano do ensino
fundamental.
Quando
este mergulha para pegar mais sururu, quem fala é Gustavo*, parceiro de
pescaria. Sentado na beira da canoa já repleta de bacias com o molusco, ele
mexe freneticamente as pernas, de forma alternada, dentro da galeia – espécie de
caixote – mergulhada na água lodosa. “Estou lavando o sururu”, explica o
garoto, de 15 anos. O movimento repetitivo não é o único desconforto. O contato
com a casca fina do marisco causa inúmeras feridas na sola de seu pé. “Não tem
jeito, paciência, tem de fazer isso. As feridas a gente lava na maré, que a
maré faz sarar.”
Ronaldo
volta à superfície e despeja os sururus na galeia para Gustavo lavá-los (Fotos:
Igor Ojeda)
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Estamos
nas proximidades das pontes Governador Paulo Guerra e Engenheiro Antônio de Góes
– que ligam a Zona Sul ao Centro e à Zona Norte do Recife –, no meio da bacia
do Pina, ecossistema situado em plena área urbana, na parte interna do porto da
capital pernambucana, formado pela confluência dos rios Capibaribe, Tejipió,
Jordão e Pina. Da Ilha de Deus, Gustavo e Ronaldo remaram bons minutos até um
banco de lodo onde era possível pescar o sururu. Em uma das margens, pode-se
avistar as casas de alvenaria da comunidade Brasília Teimosa, antiga favela de
palafitas que se tornou famosa nacionalmente depois da visita do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva apenas uma semana após sua posse, em janeiro de 2003.
No lado oposto, destacam-se edifícios de alto padrão.
Trabalho infantil
A
pesca do sururu é uma das principais atividades econômicas das comunidades
ribeirinhas dessa área, todas formadas há décadas. E, há décadas, os moradores
desses locais começam desde criança a exercer esse tipo de trabalho,
normalmente acompanhando os pais, que, por sua vez, não têm condições
financeiras de sustentar a família sozinhos. Como acontece em muitos outros
casos, na coleta desse molusco o trabalho infantil é naturalizado.
É
a maré que determina que horas Gustavo e Ronaldo começam a trabalhar. Tem dias
que eles saem às quatro da manhã. Outros, às sete. Os ribeirinhos gostam de
aproveitar as marés baixas, pois desse modo o sururu fica mais próximo da
superfície. Há vezes, porém, em que é preciso descer a cinco metros de
profundidade, sob o risco de faltar fôlego e sentir câimbras. “Já salvei tanto
criança quanto gente grande de se afogar”, conta Gustavo. Em geral, dependendo
do rendimento, os dois amigos ficam de duas a quatro horas pescando o molusco.
Assim que voltam para casa, eles o cozinham e pagam alguém da própria
comunidade para catá-lo. “Catar” o sururu significa, na verdade, abri-lo um a
um e retirar sua carne. O trabalho, igualmente muitas vezes realizado por
crianças, é extremamente desgastante e pode causar feridas nas mãos por conta
da casca afiada do pequeno marisco.
Muitos
moradores da comunidade do Pina vivem em palafitas.
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Gustavo
e Ronaldo costumam vender o produto “final” no Mercado São José, o mercado
municipal da cidade. “Vendemos a seis, cinco reais o quilo. Agora está mais
barato. Tem que trabalhar mais”, diz o adolescente de 15 anos, que usa parte do
que recebe para comprar roupas e deixa o resto em casa, onde vive com a mãe e
duas irmãs, de 12 e sete anos. “Com o que ganhamos, dá pelo menos para
sobreviver.” Para seguir trabalhando, Gustavo abandonou a escola ainda mais
cedo que Ronaldo, na quinta série. Mas não é o que quer fazer a vida toda.
“Ainda sou adolescente. Quando crescer quero arrumar um serviço melhor. Quero
ser jogador de futebol do Sport”, revela o torcedor fanático do time
pernambucano.
O
decreto presidencial 6.481, de 2008, inclui tanto a coleta de mariscos quanto
as atividades em mangues e lamaçais ou que envolvam mergulhos na lista de
piores formas de trabalho infantil. De acordo com o documento, além das
intempéries climáticas, as crianças e adolescentes que pescam sururu estão
expostas a “posturas inadequadas e movimentos repetitivos; acidentes com
instrumentos pérfuro-cortantes; horário flutuante, como as marés; águas
profundas”. Como resultado, podem sofrer queimaduras na pele, envelhecimento
precoce, câncer de pele, desitratação, doenças respiratórias, fadiga, dores
musculares nos membros e na coluna, ferimentos, distúrbios do sono e
afogamento.
Já
meninos e meninas obrigadas a mergulhar em suas atividades laborais, como é o
caso da coleta de mariscos, correm o risco de se afogar, terem a membrana do
tímpano perfurada e sofrerem de uma série de enfermidades, como embolia gasosa,
otite, sinusite e labirintite. O trabalho em mangues e lamaçais, por sua vez,
expõe crianças e adolescentes com menos de 18 anos à umidade, cortes e
perfurações e contatos com excrementos, situações que podem resultar em
rinites, bronquites, dermatites e leptospiroses, entre outras doenças.
Contraste
Pobreza e poluição contrasta com o shopping
de luxo ao fundo.
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Quem
“guia” a reportagem é Daiane. Moradora da Ilha de Deus, ela também costumava
pescar sururu, “ofício” que igualmente começou a exercer desde pequena. Hoje,
aos 20 anos, faz trabalhos de manicure e de diarista e pretende fazer faculdade
de engenharia num futuro próximo. “Normalmente, quem vai para a maré é o homem,
enquanto a mulher fica na cata, muitas vezes com a ajuda dos filhos. Mas,
quando não tem homem, vai a mulher mesmo”, explica. Há alguns anos, quando
ainda era adolescente, a jovem participou de uma ação do Centro Dom Helder
Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec) contra o trabalho infantil na sua
comunidade. O resultado, segundo ela, foi muito bom. “Diminuiu a incidência de
trabalho infantil na pesca do sururu na Ilha de Deus.” Nos últimos dois anos,
além disso, a região foi urbanizada pela Prefeitura do Recife, política que fez
melhorar as condições de moradia da população local.
Melhorias
que ainda não chegaram para a população ribeirinha do Pina. Na “entrada” da
comunidade, no entanto, a realidade é um tanto distinta. Inaugurado em outubro
do ano passado, o RioMar Shopping destoa na paisagem. Terceiro maior centro de
compras do Brasil, atrás do Shopping Leste Aricanduva, de São Paulo, e do
Salvador Shopping, o estabelecimento é destinado em parte ao consumo de alto
luxo, com lojas como Hugo Boss, Chanel Fragrance & Beauté, Daslu, e Diesel.
Partindo do ponto de encontro no RioMar, conforme Daiane e a reportagem
caminham em direção aos manguezais, as casas simples de alvenaria vão dando
lugar a apertadas construções de madeiras, e ruas asfaltadas tornam-se ruelas e
becos de terra. Espalhadas pelo chão, bacias cheias de sururu. Sob um telhado
de zinco, uma mulher descasca o molusco.
Numa
dessas moradias precárias, vive, com a família, Mariana*. “Pego sururu desde os
dez anos, para ajudar minha mãe”, diz a garota, hoje com 14 anos. Ela costuma
ir com o marido de uma das irmãs e um vizinho, ambos adultos. A tarefa é
alternada: às vezes fica incumbida de lavar o marisco pescado na galeia, o que
causa feridas nos pés. Outras vezes, ela própria mergulha para buscá-lo. “A água
bate no peito”, conta. Por causa do trabalho, a menina parou de estudar na
quarta-série. Não chegou a aprender a ler e escrever.
Para
ajudar a mãe, Mariana pesca sururu desde os dez anos de idade
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Palafitas
Acompanhada
de Daiane e da reportagem, Mariana sobe em uma das canoas ancoradas na beira do
mangue e começa a remá-la em direção ao mar, distante alguns quilômetros – no
meio do caminho, alguns minutos depois, encontraríamos Gustavo e Ronaldo. Do
barco, a visão é ainda mais impressionante. Inúmeras palafitas avançam sobre o
rio. Sacos de lixo e entulhos de todo o tipo, e ratos correndo na borda ou até
dentro da água compõem a paisagem. Após alguns minutos, o RioMar Shopping surge
imponente ao fundo. Mariana liga o motor. “Quando eu pescava, era só no remo.
Agora alguns barcos têm motor. O pessoal pagar uns R$ 500 para um morador
construir a canoa. O motor custa uns R$ 150” , explica Daiane.
Está cada vez mais difícil sobreviver da pesca do molusco,
segundo Edlene.
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A
primeira parada é na Ilha de Deus, onde várias mulheres e algumas meninas estão
sentadas catando o sururu. Uma delas é Edlene Maria Alves da Silva, de 45 anos.
“Cheguei novinha aqui. E desde que cheguei, trabalho com o sururu. Antes só
pescava, depois comecei mais a catar. Mas ainda pesco.” Segundo ela, está cada
vez mais difícil sobreviver com a venda do molusco. “Está chovendo muito. O
braço de mar aqui é fraco. Quando chove dois, três dias, o sururu morre, porque
a água fica salobra, e ele vive mais na água salgada”, lamenta.
A
auditora-fiscal Paula Neves, coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho
Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), lembra que
no Recife as crianças e adolescentes não ficam restritas à pesca e à cata do
sururu. Muitas o vendem nas praias da cidade. A comercialização de alimentos e
outros produtos na orla da capital pernambucana é uma das atividades com maior
incidência de trabalho infantil. “Os meninos que trabalham na praia normalmente
param de estudar na oitava série. Muitos deles dizem que trabalhando por três
ou quatro dias por semana ganham mais do que o pai”, diz Paula.
Menina
da comunidade Ilha de Deus cata sururu: risco de ferimentos
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*nomes
alterados para preservar a identidade dos entrevistados
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