Enquanto o luxo predomina no lado de dentro de um dos
estádios da Copa do Mundo, no lado de fora o trabalho infantil é comum na venda
de cerveja, nas barraquinhas de churrasco e na coleta de latas de alumínio,
entre outras atividades.
Salvador (BA) - Em uma
sintomática contradição biológica, a Arena Fonte Nova, estádio baiano erguido
para a Copa do Mundo de 2014, tem exposto suas vísceras do lado externo da
arquitetura que emoldura sua construção. Divididas entre brasas incandescentes,
bandejas mal equilibradas e servindo latinhas de cerveja, um batalhão de
crianças executa atividades profissionais sob olhares pouco desconfiados dos
que ali transitam.
É um domingo, 27 de outubro, e os
torcedores se aglomeram nos arredores do estádio para acompanhar o embate entre
Bahia x Atlético-PR, em Salvador, pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro de
2013.
As crianças e jovens que compõem
esse cenário da exploração aparentam idade entre 8 e 17 anos e se agrupelham
entre as mais diversas atividades informais ofertadas no espaço. Tal qual uma
ciranda desencontrada, algumas vendem cervejas acompanhadas dos pais, enquanto
outras recolhem latas de alumínio abandonadas no chão. Há ainda as que,
próximas ao braseiro, onde são assadas carnes para serem comercializadas,
ignoram os perigos da inalação da fumaça ou riscos de queimaduras com a
imprudência própria da idade. A brutalidade envolve a atmosfera do lugar, sob
olhares embrutecidos de quem enxerga aquilo como cenário habitué.
O barulho ambiente, exagerado a
ponto de extrapolar as cercanias do lugar, parece sufocar a presença da pequena
Vanessa**, de apenas 9 anos. A garota, apenas mais uma entre tantas outras
crianças submetidas ao trabalho infantil naquele espaço, mantém o olhar em um
ponto fixo, evasivo.
Arena Fonte Nova |
A menina carrega um curativo
acima do olho direito, fruto de uma traquinagem infantil, enquanto apostava
corrida durante o recreio escolar. Quando perguntada pela reportagem por que,
mesmo tão nova, precisa ir trabalhar, sorri timidamente: “Fala com minha mãe,
moço”.
“Melhor do que ficar na rua”
Há 20 anos, a senhora de 52 anos
estabeleceu seu ponto de venda de cerveja em jogos do Bahia. A bebida é
armazenada em um isopor largo, equilibrado em um carrinho de mão. Ela é mãe da
pequena desconfiada, embora também acumule a função de chefia nessa relação
familiar. “Tem pouco tempo que comecei a levá-la para me acompanhar. Vanessa
fica mais aqui para cuidar das coisas enquanto eu vou ao banheiro ou preciso
trocar um dinheiro. Não posso deixar o lugar vazio”, pontua a matriarca.
Em média, estima a ambulante, em
um dia de jogo é possível arrecadar até R$ 400 com a venda de bebidas
alcoólicas (proibidas no interior do estádio por resolução da CBF). Com o
marido encostado pelo INSS, após cirurgia delicada, ela virou responsável por sustentar
a casa ao mesmo tempo que cuida da sua prole. “Essa é outra razão pela qual
levo Vanessa comigo. É melhor do que ela ficar na rua, sem ter o que fazer,
desocupada…”, argumenta.
Explicação comum
De acordo com a socióloga baiana
Inaiá Carvalho, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), dois
elementos na fala dessa vendedora resumem a condição do trabalho infantil em
território brasileiro. “Esse problema [trabalho infantil] ainda é visto pelos
pais como um fator educacional. Na falta de uma escola em tempo integral, eles
acham que, muitas vezes, é melhor ter o filho por perto, mantendo-o longe da
rua, do crime e de tantos outros problemas”, diz a pesquisadora, que emenda: “A
outra condição é estritamente social. O trabalho na infância está ligado à
criança pobre, estritamente. Não se fala dessa questão entre jovens e crianças
de classe média, por exemplo”, afirma. Especialistas na questão costumam
defender que em vez de se criminalizar os pais, é necessário realizar um
trabalho de conscientização e de fornecimento de garantias sociais.
A socióloga, porém, diz enxergar
avanços consistentes nos últimos anos em relação ao combate ao trabalho
infantil no Brasil. “Desde a década de 1990, os governos vêm sistematicamente
trabalhando contra essa chaga social. A própria sociedade despertou de uma
postura de passiva naturalidade para uma de horror escandalizado diante do trabalho
infantil, sobretudo aquele mais pesado, na extração do sisal, carvoarias e
plantação de cana-de-açúcar. Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
8.069, sancionada em 1990), os números de casos estão diminuindo”, afirma.
Sem escola em tempo integral
Apesar da redução de 13,44% na
última década, entre jovens que trabalham dos 10 aos 17 anos, segundos dados do
último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), os
números apontam estagnação da exploração infantil como mão de obra na zona
rural e no setor informal da economia, como é o caso das crianças que trabalham
ao redor da Fonte Nova. “São duas vertentes que tiveram baixas importantes, mas
estagnaram. Chegamos a um ponto em que a única forma de resolver essa questão é
com a redução drástica da pobreza e com escolas com acompanhamento integral
para os jovens”, afirma a professora Inaiá Carvalho.
A ausência de uma instituição de
ensino que prolongue suas atividades em mais de um período é a principal causa,
por exemplo, para Gilvan**, de 14 anos, acompanhar uma senhora de 60 anos na
sua rotina de trabalho. O garoto, que recolhe dinheiro enquanto ela assa
espetos de carne, não possui qualquer relação de parentesco com a vendedora.
Nova Arena custou R$ 688,7 milhões a serem pagos em 15 anos. |
A reportagem encontrou o
adolescente trabalhando nos arredores da Arena Fonte Nova em uma quinta-feira à
noite, dia 24 de outubro, momentos antes da partida Bahia x Nacional de
Medellín (Colômbia), pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana. “Ele é meu
vizinho, lá do subúrbio ferroviário. A mãe dele sai para trabalhar e passa o
dia todo na rua, só volta de noite. Ela que me pede para levá-lo para o
trabalho, porque ele pode juntar um dinheiro e também fica mais seguro”, diz a
churrasqueira.
Copa do Mundo
O olhar de Vanessa, perdido no
horizonte, em algum momento talvez se depare com a suntuosidade da Arena Fonte
Nova. A praça esportiva seria levantada ao custo inicial de R$ 591,7 milhões,
celebrados por um contrato de PPP (Parceria Público Privada) entre governo do
estado e as construtoras OAS e Odebrecht. Entretanto, um aditivo contratual de
R$ 97,7 milhões elevou o valor final do empreendimento para R$ 688,7 milhões,
no total. A serem pagos nos próximos 15 anos.
Tal grandeza numérica, traduzida
em conforto, rótulos de sustentabilidade e embalagem de segurança para o
mundial brasileiro, ainda que fisicamente próximos parecem léguas de distância
da realidade da pequena Ana Carolina. “Nunca entrei lá não”, confidencia a
garota, em referência ao luxuosíssimo estádio.
Enquanto embala sonhos do lado de
dentro, fora o estádio expõe suas vísceras.
* Matéria produzida em parceria
com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino,
que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
** Os nomes são fictícios para
preservar a identidade das fontes.
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