Paulinho nada com dificuldades em meio a lixo e lama. |
A história dos meninos cujo
cotidiano é catar latas na imundície do Canal do Arruda.
Crédito: Wagner
Sarmento e Marina Barbosa DO JC
Eles nadam onde nem os
peixes se atrevem. De longe, suas cabeças se confundem com os entulhos. Pela
falta de quase tudo na terra, mergulham no rio de lixo atrás da sobrevivência.
Lá sim tem quase tudo: latinhas, garrafas, papelão, móveis velhos, restos de
comida, moscas, animais mortos. Menos dignidade. Lá, no Canal do Arruda, Zona
Norte do Recife, o absurdo é rotina. Anfíbios e miseráveis catam sonhos onde o
pesadelo é retrato soberano. São três meninos da comunidade Saramandaia,
melados até o pescoço da lama do abandono, numa área que o prefeito da capital,
Geraldo Julio (PSB), elencou como prioridade de sua gestão e que, até agora,
não viu resultados senão promessas.
Paulinho parece ser parte do lixo. |
O sol inclemente não
intimida. É preciso aproveitar a maré baixa, quando os resíduos se acumulam. A
cena choca, intriga, envergonha. Em pleno 2013. Em plena capital pernambucana.
Aos olhos de todos. O Canal do Arruda, foz de boa parte do lixo recifense, é a
mina de ouro de Paulo Henrique Félix da Silveira, 9 anos; Tauã Manoel da Silva
Alves, 10; e Geivson Félix de Oliveira, 12, unidos pelo sangue, pela necessidade
e pela indiferença do poder público.
Moram em dois barracos na
comunidade de Saramandaia, também na Zona Norte, e não hesitam em entrar no
fosso. Antes, era só para tomar banho, diversão infantil ocasional. Há mais de
ano, passou a ser ganha-pão. Paulinho via as cerca de cem famílias que
trabalham com reciclagem na região e decidiu tomar o mesmo caminho. Encontrou
seu nicho, o pior de todos, e arrastou os primos.
Paulinho, Galego e Geivson,
embora exemplos radicais da realidade, não estão sozinhos. De acordo com o
perfil dos catadores brasileiros elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), baseado no Censo 2010, 3,6% dos 20.166 pernambucanos que
trabalham com reciclagem têm entre 10 e 17 anos. São, oficialmente, só 726 crianças
e adolescentes no Estado que tiram seu sustento do lixo. Nas cifras do trabalho
infantil em geral, o número sobe para 1.329.229. Na faixa etária dos pequenos
catadores de Saramandaia, até 13 anos de idade, há 665.500 pernambucanos
trabalhando, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O trio se acotovelava entre
dejetos mil para catar latas de alumínio e garantir o alimento de duas famílias
com, ao todo, 18 pessoas. Nadava em meio a tudo que a cidade vomita. Paulinho,
o menor e mais astuto dentro d’água, tapava a boca com veemência. Tinha noção
exata do risco que corria. Ainda não sabe ler, mas conhece da vida o suficiente
para não deixar entrar uma gota sequer daquela lama de cheiro insuportável e
chamariz de doenças. Febre e diarreia são constantes.
O lixo lhe cobria o pescoço.
A cabeça erguida com dificuldade denunciava que ele estava ali, quase sumindo
entre materiais recicláveis, comida descartada, brinquedos quebrados, roupas
velhas, sacolas e tudo mais que se possa imaginar. Parecia parte daquilo.
Geivson, o mais velho, acompanhava o primo Paulinho na missão inglória e
diária.
Tauã, chamado por todos pelo
apelido de Galego e irmão de Geivson, foi o único que não teve coragem de se
embrenhar no meio do canal. Na beira, um pé lá e um pé cá, cumpria sua função
na engrenagem do absurdo: recolhia as latas catadas pelos outros dois. Quando
precisava ir mais no fundo para pegar algo que caiu, reclamava: “Não quero me
sujar”. Juntava tudo em um saco de farinha que é quase de sua altura.
Paulinho joga lata para Geivson, que a coloca na sacola. |
O trabalho costuma durar
horas, até a maré permitir. Findo o serviço, lavam-se no lado menos poluído do
fosso. “Tem que se limpar, né?”, frisa Paulinho, banhado de inocência. À tarde,
eles trocam o que cataram num galpão de reciclagem localizado em Saramandaia
mesmo. As latas saem tão sujas de lama que nem o depósito aceita. É preciso lavá-las
antes. “A gente tira uns R$ 5 por dia”, gaba-se Geivson. Em dia ruim, o esforço
rende apenas R$ 1. Paulinho queria comprar biscoitos. Galego e Geivson
prometeram entregar o dinheiro à mãe. Invejaram o primo.
No rio de lixo, encontram de
tudo: bola, carrinhos e bonecas; galinha, cachorro e gado morto. Até jacaré já
foi visto pelas cercanias, prova de que o risco vem de todos os lados.
Algumas feridas abertas na
pele desvelam doenças trazidas pela água suja – Galego tenta esconder com a mão
uma dermatite perto da boca; os outros têm pés e canelas cortadas por cacos de
vidro. Outras feridas, invisíveis, se revelam numa conversa mais demorada. “Se
a vida é assim, fazer o quê? Vai ter que ser. A gente só faz isso porque
precisa. Seria bem melhor se não precisasse”, reflete Galego. Achou a
resignação no meio do lixo.
Leia aqui os desdobramentos dessa matéria aqui.
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As pessoas que quiserem ajudar os garotos podem enviar
e-mail para wsarmento@jc.com.br
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