Sabrina Duran, Repórter Brasil
Em 2008, um decreto
assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva permitiu que o combate
ao trabalho infantil no país se tornasse mais abrangente, ampliando as
possibilidades de punição contra indivíduos e empresas que o utilizam e,
principalmente, protegendo muito mais crianças e adolescentes que todos os dias
são submetidos a atividades degradantes no campo e na cidade.
O
decreto de número 6.481, assinado em 12 de junho daquele ano, aprovou, em nível
federal, a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), que teve
suas bases lançadas em 1999 pela Convenção 182 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT).
Constam da relação 89 atividades, com suas descrições e consequências
para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham. Há ainda outros
quatro itens convencionados anteriormente pela OIT e que se referem à
exploração sexual, trabalho escravo, trabalhos moralmente degradantes e uso da
mão de obra infantil em atividades ilícitas, como o tráfico de entorpecentes. A
Lista TIP foi elaborada durante quase três anos por membros da Comissão
Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), coordenada pelo
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Antes
do decreto, essa lista era aprovada em forma de portaria pelo MTE. Mas nós
queríamos que tivesse uma abrangência maior, porque talvez uma atividade de
subsistência e o ato de pedir esmola na rua ou fazer malabares não fossem
considerados empregos e, por isso, não seria competência do MTE [fiscalizar].
Como foi um documento preparado por vários ministérios juntamente com a
Conaeti, centrais sindicais e confederações patronais, optou- se
por fazer um decreto, um documento mais forte que o governo inteiro tem
de aceitar”, explica o chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho
Infantil do MTE, Luiz Henrique Lopes.
Divulgação/SRTE |
Para ele, além de dar mais
peso e abrangência ao combate do trabalho infantil, a Lista TIP
desmistifica sensos comuns que, de alguma forma, perpetuam a cultura da
exploração de crianças e adolescentes. “Buscamos estudos que comprovassem
a periculosidade das atividades, justamente para desmistificar pensamentos como
‘trabalha na carvoaria, então é perigoso; trabalha no âmbito urbano, então não
é perigoso’. Não há ‘achismo’ na lista. Colocamos estudos científicos que
embasam nossas escolhas.”
Entre
8 e 10 de outubro o Brasil sediará, em Brasília (DF), a III Conferência Global
sobre Trabalho Infantil. Embora seja um evento mundial, o país tem participação
especial porque, segundo Lopes, é referência no combate a esse tipo de
exploração. “Não fazemos distinção entre trabalho rural ou urbano, nem de idade
ou de gênero. Temos o compromisso de até 2016 acabar com as piores formas de
trabalho infantil”, afirma.
Desafios no campo
Embora
a criação da Lista TIP e o trabalho de fiscalização tenham ajudado a reduzir o
uso de mão de obra infantil, ainda há sérias dificuldades que impedem a
erradicação das piores formas de trabalho. E é no âmbito rural que essas
dificuldades são mais evidentes. Faltam fiscais e suporte das autoridades
locais; sobram ameaças de empregadores e até de figuras políticas a auditores
do MTE. No campo, as distâncias a serem percorridas são longas, de difícil
acesso e, muitas vezes, o medo da população de oferecer informações dificulta
as ações de inteligência do MTE na busca de focos de exploração.
Outro
grande entrave é de ordem cultural. Não apenas empregadores, mas os próprios
familiares de crianças e adolescentes acreditam estar fazendo um bem ao
colocá-las para trabalhar. “O que mais ouvimos é que se a criança não trabalhar
vai cair nas drogas. Ou seja: as únicas opções para as crianças são o trabalho
ou as drogas. Para mim, essa é uma crença perversa”, diz Roberto Padilha, coordenador
do Projeto de Fiscalização do Trabalho Infantil da Superintendência Regional do
Trabalho e Emprego do Rio Grande do Sul (SRTE/RS).
Quando a família é o empregador
Segundo
Padilha, um dos principais focos de combate ao trabalho infantil no estado, hoje,
está no cultivo de fumo, que consta da Lista TIP. Esforço físico e posturas
viciosas; exposição a poeiras orgânicas e seus contaminantes, como fungos e
agrotóxicos; acidentes com animais peçonhentos; e exposição, sem proteção
adequada, à radiação solar, calor, umidade, chuva, frio e acidentes com
instrumentos pérfuro-cortantes aparecem na lista como prováveis riscos
ocupacionais à criança ou adolescente que trabalha na lavoura de fumo.
Bursites, tendinites, urticárias, doenças respiratórias, mutilação e câncer são
apenas algumas das consequências para a saúde. Um agravante contra o bem-estar
das crianças nesse ambiente é a liberação de substâncias tóxicas pela própria
planta do fumo.
O cultivo costuma ser
feito em pequenas propriedades familiares onde trabalham pais e filhos. “Ainda
existe muita resistência a entender as consequências do trabalho infantil”,
descreve Roberto Padilha. Na fiscalização dessas lavouras, o trabalho dos
auditores do MTE é distinto do realizado em propriedades de empresas. Não há
autuação dos empregadores ou afastamento das crianças do trabalho, mas sim
orientação e um esforço, por meio da informação e do diálogo, de substituir o
trabalho pela educação. “Ainstrução normativa 77, que regulamenta nossa atuação
nas lavouras de economia familiar, diz que nosso trabalho é de orientação às
famílias e de articulação com outros órgãos parceiros, como assistência social,
Conselho Tutelar, Ministério Público do Trabalho e órgãos de educação”, explica
Padilha.
O
objetivo dessa parceria é promover atividades de capacitação profissional das
famílias e atividades alternativas ao trabalho das crianças no campo, alertar
nas escolas sobre o risco do trabalho infantil e estimular a cadeia produtiva a
adquirir apenas produtos que não utilizem mão de obra de crianças. “O trabalho
infantil não é elemento de desenvolvimento econômico ou social. Ele abala o
desenvolvimento físico e provoca evasão escolar. O Brasil carece de mão de obra
qualificada para ocupar cargos mais bem remunerados. Nesse sentido, o trabalho
infantil é também um elemento de degradação econômica”, completa o coordenador
do Projeto de Fiscalização do Trabalho Infantil da SRTE/RS.
“Constituição é bobagem”
Jovens
de 13, 14 anos, sentados no chão úmido e sujo, respirando o ar poeirento, manuseando
facões e outros instrumentos cortantes. Durante uma manhã inteira eles não se
levantam, não bebem água e não vão ao banheiro, para não perderem tempo. Ao fim
da jornada, cada um tem como saldo da lida meia tonelada de mandioca descascada
sobre as pernas e os problemas crônicos na coluna e nos rins que o trabalho na
casa de farinha lhes dá como “paga”, além dos R$ 20 semanais, em média.
Marinalva Cardoso Dantas,
auditora fiscal do trabalho e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do
Trabalho Infantil do Rio Grande do Norte, é quem descreve a situação de
trabalho dos adolescentes nas casas de farinha – atividade que consta na Lista
TIP – espalhadas pelas áreas rurais do estado.
Assim
como no caso das lavouras de fumo familiares no Rio Grande do Sul, a questão
cultural é um dos grandes entraves para a fiscalização do MTE no Nordeste
brasileiro. “A cultura local diz que criança deve sempre trabalhar para não
virar marginal. A população pensa assim, os vereadores pensam assim, pessoas da
prefeitura, comerciantes, até o padre acha normal criança trabalhar”, diz
Marinalva.
Na
defesa das próprias convicções culturais – e dos benefícios financeiros do uso
da mão de obra infantil, que não custa quase nada a quem a explora –, os
empregadores e os que concordam com suas ideias chegam a protagonizar situações
absurdas, como o episódio vivido há três anos por Marinalva e outras três
auditoras em Boa Saúde, cidade com menos de 10 mil habitantes no agreste
potiguar.
Após tomarem conhecimento
da morte, por choque elétrico, de uma criança numa casa de farinha, elas
iniciaram um trabalho de conscientização na cidade e convocaram uma audiência
pública na Câmara Municipal local. “Só saímos de lá depois de meia-noite porque
fomos obrigadas a ficar ouvindo todos os desaforos dos vereadores, que diziam
que a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente são besteira, que
não queriam ninguém de fora dizendo como eles deveriam cuidar dos meninos da
cidade. A plateia aplaudia tudo o que diziam. Para eles, é normal uma criança
morrer de choque elétrico numa casa de farinha. E aquele não tinha sido o
primeiro caso.”
Naquela
ocasião, as auditoras afastaram onze crianças do trabalho. Mas poderiam ter
afastado mais. “Como as casas de farinha são próximas, quando a gente chega na
primeira, as pessoas já vão de moto e bicicleta avisar nas outras, e depois não
encontramos mais ninguém”, conta a auditora. Depois daquele incidente na Câmara
Municipal de Boa Saúde, Marinalva nunca mais voltou à cidade. “Só volto com
acompanhamento da polícia e alguém do Ministério Público”, diz.
Matadouros no RN
Com
tradição no comércio de carne de sol, o Rio Grande do Norte é pródigo em
abatedouros. O trabalho nesse ramo está diretamente relacionado à pecuária,
pode ser encontrado no campo ou na cidade e, no que diz respeito ao uso de mão
de obra infantil, consta da lista das piores formas de trabalho.
No estado, a
erradicação do trabalho de crianças e adolescentes no abate do gado é um
grande desafio para o MTE também por causa do traço cultural e familiar
da atividade. “Em geral, são filhos de vaqueiros e peões levados pelos
próprios pais a trabalhar ali. O trabalho vai passando de pai para
filho.” Em seu relato cru, Marinalva diz que já encontrou adolescentes
matando boi a marretadas, tirando a pele, fazendo sangria, limpando as
vísceras e as fezes. “Já entrevistei um menino que disse que bebia com
cachaça o sangue do boi que jorrava do pescoço. Outro disse que treinou
matar boi matando gato na rua a pauladas, como vê o pai fazer com o boi.
Esses meninos veem gente matando gado, gado matando gente, gente
matando gente. A violência, a morte e a vida para eles são algo muito
banal”, afirma.
Segundo a auditora, entre os mais de 160 municípios do Rio Grande
do Norte, pelo menos cem abrigam locais de abate, muitos
pertencentes às prefeituras. Nas cidades de João Câmara, Nova Cruz,
Caicó, Acari e Bom Jesus, por exemplo, a fiscalização flagrou trabalho
infantil em matadouros públicos. “Há matadouros onde o gado do próprio
prefeito é abatido por crianças”, revela Marinalva.
Outro problema
para o combate a esse tipo de atividade é o fato de as crianças serem
recrutadas por via indireta e, formalmente, não serem empregadas da
prefeitura, o que impede os fiscais de autuarem a administração
municipal. Uma solução legal, porém, foi encontrada recentemente.
“Descobrimos que podíamos fazer um auto de infração onde não é mencionada
a palavra ‘empregado’, e sim ‘manter em serviço pessoas com menos de 16
anos’. Com isso, começamos a autuar prefeituras no caso das feiras livres. Isso
foi considerado um avanço. Agora, vamos usar esse instrumento nos matadouros
porque a situação é a mesma”, explica a auditora.
Ela adianta que o
estado prepara uma fiscalização para flagrar trabalho infantil em matadouros
clandestinos, cujas condições de insalubridade e exploração são iguais ou
piores do que nos matadouros legalizados. Currais Novos, polo de carne de sol
do Rio Grande do Norte, será um dos alvos da fiscalização. “Sabemos que estão
abatendo animais em sítios. A matança é tão grande que os bois da região não
dão conta, e eles trazem gado do Tocantins”. A ação dos auditores nos
matadouros clandestinos terá apoio da Polícia Rodoviária Federal e contará com
a presença de juízes que solicitaram acompanhar algumas fiscalizações como
observadores. “Eles querem sentir a realidade da exploração das crianças.
Quando o caso chegar à sala deles, saberão julgar com mais precisão”, informa
Marinalva.
Na segunda parte
desta reportagem você conhecerá detalhes sobre o combate às piores formas de
trabalho infantil no âmbito urbano.
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