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Imagem Jean-Baptiste Debret
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Creditos: Juliana Sada, do
Promenino com Cidade Escola Aprendiz
“Estamos de muda
para Recife; preciso de um menino para mandados e para sair com Magalhães a
fazer compras e alguns servicinhos em casa, coisas ligeiras e leves. Em troca
disso, ensinarei a ler, escrever e contar. E, se tiver cabeça, podemos
colocá-lo no colégio. (...) É uma oportunidade que dou a todos, de coração, em
benefício dessa criança. Aceitam?”
Já se passaram
mais de cem anos desde que o pequeno Gregório Bezerra, um político brasileiro,
membro do Partido Comunista Brasileiro, escutou esse convite no interior
pernambucano. O ano era 1910 e, com apenas dez anos, o menino seria separado de
sua família e entraria na casa de desconhecidos, numa cidade estranha.
Mesmo após mais
de um século, essa incômoda realidade persiste. A coordenadora do Fórum Estadual
de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalhador Adolescente de
Roraima, Ana Alice Monteiro, relata que na capital Boa Vista é comum crianças e
adolescentes trabalhando como domésticos: “eles vêm do interior, não recebem
salário nem nada, é só um dinheirinho, uma roupinha, uma coisa assim”.
No Brasil, são 258 mil crianças e adolescentes de
10 a 17
anos desenvolvendo funções de empregados domésticos, de acordo com a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2011. Isso corresponde a
7% do total do trabalho infantil e 3,9% dos empregados domésticos de todo o
país. As informações são do relatório “O trabalho infantil doméstico no Brasil”, realizado pelo Fórum Nacional de Prevenção e
Erradicação do Trabalho Infantil (Fnpeti), que dedica sua campanha deste ano
abordando o trabalho infantil doméstico. Estima-se que o número pode ser ainda
maior, uma vez que muitas vezes a atividade não é vista como trabalho e sim
como uma ajuda.
Negras raízes
“Além das
tarefas de varrer a casa, limpar os móveis, pôr e tirar a mesa três vezes por
dia, limpar e arear os talheres, lavar os pratos, a pia, o banheiro, a privada,
ir à padaria às cinco horas da manhã, fazer todos os mandados, ir ao mercado
comprar verdura e carne verde às terças e quintas-feiras, passar o pano molhado
três vezes por dia na sala de jantar, na copa e corredor, ainda apareceu a
tarefa nojenta de lavar três vezes por dia as escarradeiras, em número de onze,
e igual número de penicos cheios de merda e mijo fedorentos. Essas tarefas
foram o meu abecê e a minha tabuada, algo muito diferente daquilo que dona
Neném prometera a dona Dondom e a minha irmã. Havia dias em que eu não tinha
tempo bem de me coçar”.
A rotina de
exploração relatada por Gregório Bezerra foi vivenciada após pouco mais de 20
anos da abolição da escravidão. A sociedade ainda estava impregnada por esse
tipo de atividade. Entretanto, passados mais de cem anos, persistem traços
daquele período nas relações de trabalho.
“O trabalho
infantil doméstico, indiscutivelmente, está associado à escravidão e à cultura
de exploração do trabalho humano reproduzido pelo modo de produção
capitalista”, explica o docente da Universidade de Santa Cruz do Sul André
Viana Custódio, autor do livro “Trabalho infantil doméstico no Brasil”, junto
com Josiane Petry Veronese. A visão é compartilhada pelo professor de História
da Universidade de São Paulo, Pedro Puntoni, “o trabalho doméstico como a gente
conheceu até pouco tempo vem do escravismo, sobretudo do século XIX quando a
escravidão é mais ampla e atende outros serviços, inclusive o doméstico”.
Puntoni destaca
ainda o preconceito que existe em relação aos trabalhadores domésticos em geral
e que vem desse período. “No Brasil, o trabalho é visto como coisa de escravo,
quem trabalha com a mão, é vil. Mas isso tem mudado, ainda há um preconceito,
mas temos tido uma modernização”, explica o professor.
Além da
escravidão, Custódio aponta que a imigração europeia do final do século XIX
reforçou “as práticas de transferência de responsabilidades do trabalho adulto
para o infantil”. O pesquisador explica que “na Europa, havia uma cultura de
que era importante ter filhos para ter muitas mãos para trabalhar no campo. É
algo que a Europa abandona já no século XIX e aqui no Brasil persiste e até
avança”. “O trabalho infantil doméstico na atualidade é um resquício que
permanece dessas práticas históricas”, conclui o pesquisador.
Avanços e
perspectivas
Mesmo com a
persistência desses traços na sociedade, a legislação brasileira avançou muito
nas últimas décadas tanto na formalização do trabalho doméstico quanto na
proteção da infância e da adolescência.
Em 1972, o
trabalho doméstico foi reconhecido como profissão e em 2013 foram garantidos
aos profissionais dessa área os mesmo direitos de outros trabalhadores, com a
aprovação da chamada PEC das domésticas. Apesar de não ter relação com o trabalho
infantil, Custódio acredita que a PEC pode trazer consequências positivas na
redução da exploração de mão de obra de crianças e adolescentes. “Há o
impacto indireto, pois a formalização do trabalho dos adultos trabalhadores
domésticos pode garantir trabalho decente aos pais e assim impactar
positivamente nas práticas de proteção e cuidado com a infância”, afirma o
pesquisador.
á em relação ao trabalho infantil
doméstico, foi apenas em 2008 que o Estado brasileiro promulgou a lista TIP,
que determina as piores atividades desenvolvidas por crianças e adolescentes e,
entre elas, o serviço doméstico. Os trabalhos que compõe a lista TIP não podem
ser exercidos antes dos 18 anos e o Brasil se comprometeu a erradicar até 2015
essas formas de exploração da mão de obra.
Entretanto, o
trabalho infantil doméstico é considerado uma das modalidades de mais difícil
combate. “A principal dificuldade para erradicar o trabalho infantil doméstico
é o fato de se realizar no campo da invisibilidade, ou seja, ocorre dentro de
casa”, afirma Custódio. De acordo com a Constituição brasileira, o lar é
inviolável e os fiscais só poderiam entrar com o consentimento do morador ou
por meio de determinação judicial. Para André Custódio, a questão é relativa:
“sempre que houver uma violação de direito, as autoridades públicas têm o poder
de atuar para sanar a violação”.
A infância e
seus direitos
Para o
pesquisador, a sociedade ainda tem, como um todo, dificuldade em enxergar as
crianças como sujeitos de direitos e reconhecer violações. Custódio relata a
existência de uma “tradição de violência e exploração contra à infância, que
resiste nos discursos autoritários, na cultura ‘menorista’ que nega o
reconhecimento da condição de sujeitos de direitos a crianças e adolescentes, na
omissão dos agentes públicos e na indiferença dos agentes privados”.
Ainda assim,
Custódio analisa positivamente a evolução da visão da sociedade em relação às
crianças: “são transformações substanciais que ocorrem ao longo da história
brasileira na visão sobre a infância. Do desconhecimento da infância enquanto
condição singular ao reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos houve significativas conquistas e a superação de obstáculos difíceis”.
*Nascido no
agreste pernambucano, Gregório Bezerra foi um político brasileiro, membro do
Partido Comunista Brasileiro. As citações são de sua autobiografia “Memórias”,
publicada pela editora Boitempo.
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